Tuesday, January 17, 2017

Faz dias que eu quero escrever e não sento para fazê-lo. Pensei em esrever sobre várias coisas: o ensino de língua portuguesa aqui nos EUA, como é fazer uma dieta anti-refluxo - e o quanto isso é um saco! - ou sobre Tucson, pra onde fui esse fim de semana, ou ainda sobre o seriado Narcos da Netflix. Mas tem uma coisa que tem ressurgido em conversas telefônicas com amigas, conversas com o meu marido, comentários sobre os posts de amigas em seus blogs.  O tema é uma cena que vi  semana passada, quando passei por uma parada de ônibus antes de o dia amanhecer - eu tinha uma consulta  cedo e super longe e o dia aqui essa época do ano não clareia até depois das 7 da manhã. A cena era simples e banal para os dias de hoje, especialmene pra quem viveu numa cidade chamada Fortaleza. Uma pessoa dormia embaixo da marquise, enrolada num cobertor, num frio de mais ou menos uns 7 graus. Eu segui andando para a parada de ônibus na qual eu ia pegar o ônibus (do outro lado da rua), mas segui pensando o que sempre penso quando vejo uma cena dessas: "meu Deus, como é a vida de alguém mora na rua... imagina dormir num frio desses, exposto ao perigo. E quando chove? Como é que dorme? E quando acorda, sem ter noção de como vai poder tomar café ou almoçar ou jantar. Sem ter um banheiro pra tomar um banho quente, e assim seguir, dia após dia..." Nos Estados Unidos existem abrigos, onde os moradores de rua podem, pelo menos teoricamente, comer uma refeição, dormir e tomar um banho. Mas ultimamente tenho visto mais pessoas na rua. Imagino que haja cada vez menos dinheiro para investir em projetos sociais, dado o discurso sobre pobreza e desigualdade social nesse país, muito parecido com os absurdos que a gente escuta no Brasil. Nos EUA também há muitos moradores de rua que têm distúrbios mentais, dentre eles muitos veteranos de guerra deixados à mingua, com PTSD, sem tratamento e sem condições de vida dignas. Na parada do ônibus onde eu pego o ônibus pro campus, de vez em quando uma mulher aparece por lá empurrando um carrinho de supermercado e conversando com seus amigos imaginários. Ela grita, ri, faz piada com esses amigos. Totalmente desconectada do que acontece ao redor dela, aqui, fora do lado de fora. Quando a vejo, sinto um misto de compaixão, revolta e alegria por ela ao mesmo tempo. Compaixão porque sempre penso na minha avó, a qual, se não tivesse tido o apoio que teve da minha mãe talvez tivesse acabado nas ruas assim. Revolta porque ela merece o tratamento que outros têm às custas do abandono de pessoas como ela. Alegria porque, quando escuto riso solto dela às vezes penso: ela no final das contas, ela deve ser feliz. Muito mais do que muitos nós, sãos, talvez. Não quero dizer com isso que a situação social dela seja justa ou se justifique por uma alegria motivada por problemas psicológicos. E com certeza esses mesmos problemas devem levá-la a um fundo do poço de tristeza em alguns momentos também. Falo  dessa alegria espontânea e completa, ainda que provavelmente passageira, de quem vive aí dentro da própria cabeça passando tempo com seus fantasmas. Até hoje nunca a vi triste. E espero que ela continue, de um jeito ou de outro, feliz.

Ver moradores de rua é uma coisa que me dói na alma. Porque como os americanos dizem, it hits  close to home por causa da minha mãe e da minha avó. É um sentimento de impotência sem tamanho. Continuar seguindo à parada do ônibus, entrar nele ouvindo música no meu celular, chegar no meu escritório confortável e ligar meu computador novo pra responder meus emails, imprimir atividades pros meus alunos que ensinam os números a eles em português, esquentar minha comidinha caseira no micro-ondas, encher o bucho, e tocar pra frente enquanto essas pessoas continuam ali, na rua, e outras tantas mais sofrem de fome, de perseguição religiosa, do  mais absoluto abandono faz eu me sentir uma farsa e me faz questionar: que diabos de diferença faço eu no mundo? Daí eu me agarro na educação. Falo sobre o Fome Zero quando aprendemos o vocabulário sobre comida, escrevo sobre a literatura de periferia e apresento o trabalho diante de platéias que às vezes deixam escoar suas visões preconceituosas, às quais eu diplomatacamente rebato, mostro filmes sobre a ditadura brasileira e converso com meus alunos sobre os perigos de certas ideias que circulam no dia-a-dia deles, escolho fotos de pessoas de várias etnias e raças para ensinar todo tipo de vocabulário: roupa, descrição física, profissões (porque representatividade importa, SIM!), passo tempo extra com alunos de origem humilde que têm dificuldade em aprender o material, encorajo, escrevo carta de recomendação, oriento, faço tudo pra ajudar aquela pessoa a ter a chance de conseguir um emprego e passar essas lições pra frente e ensinar outras ainda mais importantes.... É pouco. É muito pouco. É quase nada, na verdade. Mas como eu disse pra uma amiga querida essa semana numa conversa pelo telefone: é algo. E alguma ressonância deve ter em algum lugar.  Eu espero.

Inté,

Ligia

2 comments:

  1. Ligia, minha querida...

    Somos tão parecidas às vezes... Sinto um nó na garganta lendo seu texto. O mesmo nó que sinto quando vejo, muitas vezes, cenas como a que descreveu. Em Fortaleza, em BH, em São Paulo, Belém, Brasília, Rio. E aquela sensação incomôda de impotência. Mas sempre podemos fazer mais. Sim, nós podemos.

    Obrigada, minha cara.

    ReplyDelete
  2. Lu, sempre me lembro de ti quando penso, falo ou escrevo sobre essas coisas <3

    ReplyDelete