Faz dias que eu quero escrever e não sento para fazê-lo. Pensei em esrever sobre várias coisas: o ensino de língua portuguesa aqui nos EUA, como é fazer uma dieta anti-refluxo - e o quanto isso é um saco! - ou sobre Tucson, pra onde fui esse fim de semana, ou ainda sobre o seriado Narcos da Netflix. Mas tem uma coisa que tem ressurgido em conversas telefônicas com amigas, conversas com o meu marido, comentários sobre os posts de amigas em seus blogs. O tema é uma cena que vi semana passada, quando passei por uma parada de ônibus antes de o dia amanhecer - eu tinha uma consulta cedo e super longe e o dia aqui essa época do ano não clareia até depois das 7 da manhã. A cena era simples e banal para os dias de hoje, especialmene pra quem viveu numa cidade chamada Fortaleza. Uma pessoa dormia embaixo da marquise, enrolada num cobertor, num frio de mais ou menos uns 7 graus. Eu segui andando para a parada de ônibus na qual eu ia pegar o ônibus (do outro lado da rua), mas segui pensando o que sempre penso quando vejo uma cena dessas: "meu Deus, como é a vida de alguém mora na rua... imagina dormir num frio desses, exposto ao perigo. E quando chove? Como é que dorme? E quando acorda, sem ter noção de como vai poder tomar café ou almoçar ou jantar. Sem ter um banheiro pra tomar um banho quente, e assim seguir, dia após dia..." Nos Estados Unidos existem abrigos, onde os moradores de rua podem, pelo menos teoricamente, comer uma refeição, dormir e tomar um banho. Mas ultimamente tenho visto mais pessoas na rua. Imagino que haja cada vez menos dinheiro para investir em projetos sociais, dado o discurso sobre pobreza e desigualdade social nesse país, muito parecido com os absurdos que a gente escuta no Brasil. Nos EUA também há muitos moradores de rua que têm distúrbios mentais, dentre eles muitos veteranos de guerra deixados à mingua, com PTSD, sem tratamento e sem condições de vida dignas. Na parada do ônibus onde eu pego o ônibus pro campus, de vez em quando uma mulher aparece por lá empurrando um carrinho de supermercado e conversando com seus amigos imaginários. Ela grita, ri, faz piada com esses amigos. Totalmente desconectada do que acontece ao redor dela, aqui, fora do lado de fora. Quando a vejo, sinto um misto de compaixão, revolta e alegria por ela ao mesmo tempo. Compaixão porque sempre penso na minha avó, a qual, se não tivesse tido o apoio que teve da minha mãe talvez tivesse acabado nas ruas assim. Revolta porque ela merece o tratamento que outros têm às custas do abandono de pessoas como ela. Alegria porque, quando escuto riso solto dela às vezes penso: ela no final das contas, ela deve ser feliz. Muito mais do que muitos nós, sãos, talvez. Não quero dizer com isso que a situação social dela seja justa ou se justifique por uma alegria motivada por problemas psicológicos. E com certeza esses mesmos problemas devem levá-la a um fundo do poço de tristeza em alguns momentos também. Falo dessa alegria espontânea e completa, ainda que provavelmente passageira, de quem vive aí dentro da própria cabeça passando tempo com seus fantasmas. Até hoje nunca a vi triste. E espero que ela continue, de um jeito ou de outro, feliz.
Ver moradores de rua é uma coisa que me dói na alma. Porque como os americanos dizem, it hits close to home por causa da minha mãe e da minha avó. É um sentimento de impotência sem tamanho. Continuar seguindo à parada do ônibus, entrar nele ouvindo música no meu celular, chegar no meu escritório confortável e ligar meu computador novo pra responder meus emails, imprimir atividades pros meus alunos que ensinam os números a eles em português, esquentar minha comidinha caseira no micro-ondas, encher o bucho, e tocar pra frente enquanto essas pessoas continuam ali, na rua, e outras tantas mais sofrem de fome, de perseguição religiosa, do mais absoluto abandono faz eu me sentir uma farsa e me faz questionar: que diabos de diferença faço eu no mundo? Daí eu me agarro na educação. Falo sobre o Fome Zero quando aprendemos o vocabulário sobre comida, escrevo sobre a literatura de periferia e apresento o trabalho diante de platéias que às vezes deixam escoar suas visões preconceituosas, às quais eu diplomatacamente rebato, mostro filmes sobre a ditadura brasileira e converso com meus alunos sobre os perigos de certas ideias que circulam no dia-a-dia deles, escolho fotos de pessoas de várias etnias e raças para ensinar todo tipo de vocabulário: roupa, descrição física, profissões (porque representatividade importa, SIM!), passo tempo extra com alunos de origem humilde que têm dificuldade em aprender o material, encorajo, escrevo carta de recomendação, oriento, faço tudo pra ajudar aquela pessoa a ter a chance de conseguir um emprego e passar essas lições pra frente e ensinar outras ainda mais importantes.... É pouco. É muito pouco. É quase nada, na verdade. Mas como eu disse pra uma amiga querida essa semana numa conversa pelo telefone: é algo. E alguma ressonância deve ter em algum lugar. Eu espero.
Inté,
Ligia
Ligia, minha querida...
ReplyDeleteSomos tão parecidas às vezes... Sinto um nó na garganta lendo seu texto. O mesmo nó que sinto quando vejo, muitas vezes, cenas como a que descreveu. Em Fortaleza, em BH, em São Paulo, Belém, Brasília, Rio. E aquela sensação incomôda de impotência. Mas sempre podemos fazer mais. Sim, nós podemos.
Obrigada, minha cara.
Lu, sempre me lembro de ti quando penso, falo ou escrevo sobre essas coisas <3
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