Sunday, June 25, 2017

Desde a útima vez que escrevi pensei em tantas coisas sobre as quais queria escrever - o filme A chegada, a situação política no Brasil, minha saudade ao deixar Fortaleza... - mas o tempo foi passando e acabei não escrevendo sobre nada disso. Hoje, por algum motivo, me lembrei de um desses temas: os moradores de rua de San Diego. Em abril fui à cidade para um congresso sobre cultura pop. Aqui nos EUA quando você consegue um emprego acadêmico, dependendo da instituição e do tipo de emprego, você recebe o que eles chamam de uma oferta, a qual você pode, mais ou menos, dependendo da sua experiência e o quão bam-bam-bam você é, negociar com a universidade. Esse pacote muitas vezes inclui algo chamado start up fund, que é um dinheiro que você recebe pra se instalar nos seus primeiros anos, fazendo coisas do tipo comprar computador, livro, fazer pesquisa de campo e ir a congressos apresentar a sua pesquisa, que é uma das 4.567 coisas que exigem durante o estágio probatório e das quais dependem a sua estabilidade seis anos depois quando te dão uma carta dizendo você é um caminhão carregado de  rapadura ou ou vai, vai, vai-te embora, fulerage! Bom, eu recebi um desses start up funds e infelizmente só tenho três anos pra gastar. É dinheiro demais pra alguém como eu, que tá acostumada a economizar em tudo. Então, tenho viajado muito a congressos por conta disso. Um deles foi em San Diego, na Califórnia. Uma cidade linda, cheia de coisas interessantes pra fazer... e com uma desigualdade social do caramba, como é de se esperar nos EUA, em meio a um capitalismo neoliberal do cão, num lugar onde a especulação imobiliária deixou muita gente sem teto, como é o caso do sul da Califórnia. Fiquei num hotelzinho numa área chamada Gaslamp quarter, perto do hotelzaço onde era a conferência. Essa área é turística. Perto de quase tudo que tem de interessante pra fazer na cidade. O hotel, um hotel sem luxos, com uma proposta de oferecer a tal da experiência que os millennials tanto buscam, era pequeno mas longe de ser barato porque NADA é barato naquela área. Eu, que não importa quanto dinheiro eu chegue a ganhar nessa vida, vou sempre ser pobre, me sentia deslocada como sempre me sinto em muitas instâncias dessa vida. Diga-se de passagem, eu tenho uma dificuldade gigantesca de socializar em qualquer ambiente onde um prato de comida custe mais que $7 ou $8 (comer fora nos EUA eh caro, no matter what. Nem fast food aqui é muito mais barato do que isso). Como eu sempre digo pra meu marido, em lugares assim, não sei direito onde colocar as mãos. O hotel não inclui café-da-manhã, então no primeiro dia fui num Subway a caminho do hotel e comprei metade de um sanduíche. Era cedo, só tinha eu lá e o cara que atendia na loja, quando um senhor morador de rua entra e compra um café. Senta não muito distante de mim e olha um caderno, enquanto faz barulhos estranhos. Imagino que ele provavelmente tinha algum tipo de distúrbio psicológico, como é tão comum entre moradores de rua nos EUA. Terminei meu meio sanduíche e fui para o hotel. Ter visto esse homem me levou a prestar atenção em quantos mais moradores de rua eu encontraria no caminho. Quando cheguei perto do hotel, numa espécie de parque misturado com praça, tinnha praticamente uma multidão de pessoas sem-teto. Atravessei a rua e fui para o congresso com aquilo na cabeça.

Na hora do almoço, a dificuldade de sempre quando viajo e o hotel não tem uma geladeira e um micro-ondas: comida demais pra mim - as porções americanas são sempre suficientes pra duas pessoas - não posso comer tudo e detesto estragar comida. Pedi pra embalarem pra levar e pensei: pergunto a um dos moradores se rua se ele ou ela querem. E assim o fiz. Primeiro, encontrei uma mulher que muito me agradeceu. Falei de nada e me dei conta: ah bicha lesada! Tu esqueceu de pedir um garfo e uma faca pra levar! Já no jantar não cometi mais o mesmo erro. Mas voltando à mulher: eu entreguei a caixa de comida pra ela e continuei caminhando. Quando cheguei na linha do trem, onde tinha que parar, olhei pra trás. A felicidade dela ao comer me deu um nó na garganta sem tamanho. E uma raiva misturada com aquele questionamento que sempre me faço: que diabos de diferença faço eu contra as injustiças do mundo? Eu entrego essa comida pra essa mulher e vou pra esse hotel chique, participar de um congresso onde nós, pesquisadores, viajamos de avião, ficamos em hotéis confortáveis - uns mais que os outros, mas still: como comparar isso a morar na rua? - tomamos nossos banhos quentes, vestimos nossas roupas, para muitos de marca, apresentamos nossos trabalhos sobre como o mundo é injusto, etc., etc.,... almoçamos comida abundante em restaurantes - again, uns mais chiques do que outros, but still, comida! - e dialogamos nossa intelectualidade ao beber cafés do Starbcuks - pra quem sofre de gastrite e refluxo como eu, nossos chás de camomila - e voltarmos para o conforto dos nossos hotéis e o conforto das nossas casas, enquanto aquelas e tantas outras pessoas continuam ali, na rua, no frio, no calor, sem banho, sem parente, sem comida, dependendo de pessoas que reparem que elas existem e deem restos de comida pra elas... e continuem a viver suas vidas confortáveis e depois escrevam posts em blogs do conforto do ar-condicionado enquanto esperam o almoço ficar pronto... Que merda de mundo imbecil! Me sentia/sinto péssima e inútil e hipócrita... O único consolo que me restava era escutar a voz da minha mãe na cabeça: quando se tem fome, o valor de um resto de comida é inigualável. Não resolve a situação, mas alivia o sofrimento por algumas horas. Daí eu fazia a mesma coisa, todos os dias, em todas  refeições. Pedia metade da comida pra levar, garfo e faca de plástico, e saía na rua até encontrar alguém a quem eu pudesse oferecer a comida. E enchia os olhos d'água e chorava cada vez pensando no quanto eu deveria fazer mais do que isso....